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Cultura no Norte Alentejo

É Alentejo - mas não é bem Alentejo. Tem traços da Beira, outros do Ribatejo. É menos plano, mais verde, menos amplo, mais variado. Habitado por um povo de falar ainda mais marcado, o Alto Alentejo, hoje distrito de Portalegre, cobre o termo do que foram as terras de Avis, esse espaço imenso e pouco povoado que D. Afonso II situava entre Santarém, Coruche, Évora, Elvas e Abrantes. Terra de transição, nela ainda encontramos os espaços abertos e muito levemente ondulados da peneplanície alentejana

a par com relevos vigorosos como os da serra de São Mamede. Conforme caminhamos para norte, os campos cerealíferos de Campo Maior, onde ainda domina a grande propriedade, vão dando lugar a hortas, vinhedos e olivais que se dividem por muitos donos e se dispõem em mosaico numa paisagem de morros mais marcados e vales mais cavados. Os povoados, antes de um branco luminoso e quase violento, tornam-se mais sombrios, o granito substitui, como material construtivo, o xisto e o adobe, e a pedra nobre surge à vista, aparelhada e robusta. Nos campos, as árvores do sul, sobreiro e azinheira, dão lugar aos carvalhos de folha caduca, e nas encostas verdes de São Mamede, ao castanheiro. É o sinal de que passamos das terras de verões longos e secos para aquelas onde já chega alguma brisa marinha e onde o ar ainda carrega alguma humidade. Se o Guadiana e o Sado, rios quase secos, marcam o sul, aqui já estamos na bacia do Tejo e há muito que as linhas de água do afluente Sorraia foram represadas numa malha de albufeiras que refresca a paisagem e rega as baixas verdejantes.

Norte Alentejano
José Manuel Fernandes


GASTRONOMIA
A cozinha do Norte Alentejano é uma cozinha sazonal. Aqui vão  algumas sugestões para lhe abrir o apetite.
Pelas matanças do porco (Janeiro/Fevereiro), uma sopa da cachola: vísceras do porco, sangue do mesmo, banha, especiarias, acompanha com sopas de pão e gomos de laranja para "cortar" o gosto. Pela Páscoa, o sarapatel - borrego ou cabrito, sangue do animal, especiarias e o inevitável pão de trigo -; as mioleiras de borrego e, nas festas campestres de segunda e terça feira após o Domingo de Páscoa, o borrego ou chibinho assado (normalmente as pernas). No verão, os gaspachos e os intermináveis petiscos, e os cozidos; vários peixes fritos com saladas e, na cozinha caseira, a galinha de campo com tomate. No inverno, as referidas açordas e migas, a digestiva "sopa da panela", nesta região com base no perú e perfumada com hortelã.
Vamos aos doces: Em Elvas, a sericaia (ou sericá), embora se encontre por toda a região.
As queijadas a partir do requeijão de ovelha. No Carnaval, os nógados, as filhós (minha avó e as irmãs diziam: uma filhó, duas filhozes), as boleimas. Na Páscoa, os bolos fintos e, a partir da mesma massa, os folares, moldados de modo a reproduzir várias figuras. Os lagartos são obrigatórios e dentro do corpo têm um a dois ovos cozidos. Ornamentam-se com fitas coloridas à volta do pescoço (esta de um lagarto com coleira como se fosse um caniche, só lembra a um alentejano), amêndoas no dorso. Ainda hoje, na Semana Santa, pode ver passar mulheres com grandes tabuleiros de folha cheios de bolos fintos e folares a caminho do forno do padeiro. No Natal fazem-se azevias, especialmente com recheios de grão e gila. Aqui e ali poderá ver nas ementas o tecolameco. Não o submeto à tortura de lhe prometer o que certamente não encontrará facilmente. As doçarias conventuais que sobreviveram estão, na sua maioria, encerradas nos sacrários dos livros de receitas transmitidas de mães a filhas. Só nos resta esperar o querer das Autarquias para que promovam as necessárias divulgações e um pouco de vontade de restauradores e doceiras. Agora, se alguma família lhe abrir as portas em hospitaleiro e fidalgo convite, então sim: perceberá a diferença entre a sericaia restaurativo-comercial e o verdadeiro doce (de nome original "sericá") quiçá ainda levado ao forno em prato de estanho. Porque não desejo levá-lo atrelado à ficção, dispenso-me de lhe prometer um "manjar branco" ou a sua variante de "manjar real": não estou a ver uma sobrinha bisneta de freira clarissa portalegrense a desfiar pacientemente um peito de galinha de campo (quão longo cozimento), a moer o arroz em farinha fresca e finíssima e, depois de laboriosa confecção, o presentear com o cremoso produto espraiado em travessa de porcelana, herança de algum Capitão das Índias …
Disseram-me que já voltaram a fazer os rebuçados de ovos das feiras dos meus tempos de petiz … aproveite se encontrar.

José Manuel Pinho Martins

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